30 de agosto de 2009

O protão

Havia, certa altura, um rapaz que gostava de tigres. De tigres e, ouvi certa vez, de cactos. Esse rapaz era moreno e calado e dizia-se que via o mundo como um imenso campo energético em que nós, como pequenos electrões atarefados como formigas dávamos voltas infinitas nas intermináveis camadas de valência sem destino. Seria esse rapaz doce então como um núcleo atómico, vendo todos girarem à sua volta num frenesim, mantendo sempre o ritmo imposto pelo vácuo circundante, girando, girando, girando como piões infatigáveis.

Às vezes o rapaz tentava dizer algo, falava muito alto, mas ninguém o queria ouvir, tão ocupados estavam em perceber o caminho já percorrido infinitas vezes, em procurar falhas que se tinham escapado na volta anterior. Não o ouviam porque ele estava no centro e não era suposto olhar para o lado. Tinham-lhes ensinado uma vez, num sono pavloviano, a não olhar para o lado: deviam olhar em frente, sempre em frente, girando estonteantemente, isso era o correcto, aí seria o caminho, seguindo os outros como numa manada imbecil.

O rapaz então calava-se, limpava o suor da testa vermelha de tanto gritar, escrevia sinais em folhas de papel A4 e agitava-os. Mas ninguém olhava para o lado. Todos os electrões olhavam em frente, só em frente, para os rabos dos outros electrões e continuavam às voltas, às voltas, sem enjoar.

Às vezes os electrões viam outros electrões de outros átomos a girar e pensavam piedosamente "Pobres coitados, perseguem-se uns aos outros como doidos!". O rapaz sorria com placidez e quietude e continuava a tentar dizer-lhes algo.

Quando conheci o rapaz ele estava já transformado numa estátua branca. Era uma estátua de mármore, alucinante, de punhos cerrados, lágrimas de desespero e boca aberta, porém muda. Comecei a chorar, vendo o seu desalento feito em pedra.

Ai, rapaz que gostava de tigres, como gostaria de te ter ouvido…

8 de agosto de 2008

liberdade


Como uma árvore, que cresce e cresce apontando o infinito, enfiando as suas raízes na garganta da Terra, que alimenta e protege, como uma sangrenta placenta gigante. Árvores crescem para o céu e para a terra. Dão flores, são belas. Dão frutos, são férteis.

São horas. Horas que passam ligeiras, como uma névoa ou um cometa. Doce e quente, como se fechadas nas palmas das mãos de alguém. Depois alguém corre, se afasta, alguém regressa, alguém morre, alguém se salva. E começa de novo. Como um relógio que, sem sair do seu eixo, afasta um passado. Pudesse eu atrasá-lo, ou recuar os ponteiros, e voltar atrás. Agarrar-me à arvore. E às horas.

Quero ser um pardal. Atrasar as horas, torná-las minhas, não precisar de agarrar-me aos pulsos, libertar o choro, cantar alto e espetar o peito num espeto.

Quero libertar-me. Das raízes e dos relógios.
Intemporal e sem origens. Vadia, sem rumo.

Sou um pardal.
Sorrio. Vou voar. Volto amanhã.

5 de agosto de 2008

lição



«Estou feliz. Cheia como um pássaro que acaba de se empanturrar com minhocas gordas. A felicidade não me cansa. Trespassa tudo, não vê a barreira do possível e enche o infinito com coisas boas e leves. Existem dias negros. Muitos. Mais do que algumas pessoas conseguem suportar. Mas quem disse que o negro é mau? Não será, porventura, nas trevas que mais brilham as luzes?
A dor faz-nos ridículos aos olhos dos que assistem à nossa tortura emocional da plateia. Faz-nos frágeis, incoerentes, irracionais e impulsivos. Poucos são os homens que se elevam na dor, ao invés de se diminuírem, como pêgas reles, rameiras submissas que dão o corpo e a alma em troca de papel-moeda sujo e de tabaco de enrolar. Mas sempre resta aquela subtil promessa de beleza que nos prende à vida, que nos faz dar passos atrás de passos, por mais pequenos ou doentios que nos pareçam, esperando chegar a algum lado. E esse caminho percorrido com lágrimas e derrotas chega, finalmente, a um termo, um de muitos, de vários termos seguidos, contrapostos, adjacentes, cada um se sobrepondo ao outro, alternando a felicidade e a plenitude com a dor e a perda, tortuosamente encarcerados como cadáveres derretidos ao sol.
Agora esqueci. Esqueci o sofrimento que me provocaram e o sofrimento que provoquei aos outros que amo ou amei. Coisas que, outrora, tomavam o meu fôlego, hoje parecem-se com caprichos, coisas tão pequenas como ratos do campo, ou como lampiões acesos durante o dia. Cresço a cada queda, como crescem os Homens. Caio, mas ergo-me mais alta. Continua a busca incessante pela pessoa, pela personalidade e sedenta de bem. Como um ritual de iniciação contínuo, doloroso e infindável. Pareço bem. Sinto-me bem. Mas há marcas que ficam, e ainda bem, ou as lições nunca seriam ensinadas e aprendidas. Aprender a perdoar e a não julgar, quero dizer. A resolver conflitos e a olhar pela retina dos outros. É bom amar e ser amado, é bom partilhar, sentir, distinguir o que se sente da carência do que não se sente e é bom gostar de nós e da vida que temos. Obrigada pela alma.»

Hoje foi só isto. Como uma adulta, esqueci a poesia em casa. Pousei os pés no chão, coloquei um dos sorrisos à escolha e endireitei as costas. Pé ante pé, a afastar-me do que me doeu.
Estou bem aqui. Gosto deste lugar, desta luz. Gosto dos braços dele e de o beijar. O meu coração também gosta dele. De uma forma romântica e carinhosa. Coisa que os braços por vezes não mostram.

5 de julho de 2008

a_braços


O teu abraço
é o melhor lugar do mundo para se estar.
É por lá que me quero adormecer.
Como uma manta
antiga
que me relembra o útero.


.Beijo.

4 de junho de 2008

homenagem...


...se forem as minhas palavras dignas dele.

Dulcilucente sombra que corre e se agarra, e num abraço os afunda submersos em vazio, pois entre seus braços não há mundo, não há dor, não há crime ou razão. Cresce como uma lâmina de ouro branco, que não rompe, que não corta. Quase inútil e ainda assim voraz. Ele respira com uma máquina cosida ao peito morto, e corre, com a luz a perseguir-lhe a sombra murcha, numa dança paulatina que não cansa, sem palco, como a fogueira que baila na noite da praia. E há aquelas dunas a rugirem ao mar e ao fogo como leões selvagens amarrados com correntes de vidro. Elas dançam vestidas de seda diáfana, como pêras roxas a abanarem a cintura, numa dança fértil de ilusões e façanhas eróticas. Cânticos sem palavras entoam-se vindos do fogo. As feiticeiras despem-se, numa adoração ao rapaz que aí vem, a correr num desespero que o inebria. Os braços abertos esperam-no, como uma poltrona que proclama o descanso eterno. E o perdão. O perdão pelas palavras e pelos actos. Não existem palavras ou actos agora. Não obscenos o bastante. Apenas as feiticeiras já nuas, quentes, como calmantes púrpura, o prazer idílico, os sons de macumbas ou de sereias a ribombar na fogueira que ondula com o vaivém do vento. O mar a aquietar-se para não incomodar o culto. E no fim o rapaz a correr pronto vulto, numa corrida pachorrenta e representada, a sua fuga, o silêncio a arrastar-se e as dunas carmesins ao longe, tão longe.

Ao Lord, que me diz qual a primeira palavra. Tantas vezes.


2 de maio de 2008

48 minutos

Quando foi que aconteceu? Quando é que achávamos que sabíamos tudo, que éramos possuidores do mais puro e nobre amor e depois fugiste? Quando nos enganamos assim tanto que, julgando-nos conhecedores das palavras, as tuas ideias suaves, as minhas loucuras engraçadas, deixaram de se completar? Largaste as minhas mãos miseráveis, sem que o teu orgulho fosse esfaqueado por mil lâminas a arder, sem que eu te impedisse de seguir em frente sem julgar os danos que me causarias. Não ousei estender a mão e agarrar-te, impedir-te de desaparecer. Mas também não foste sequer digno de voltar-me um último olhar, ah!, esse teu doce e brando olhar! Soubesse eu o bendito mal que esses verdes olhos doces me lançaram. Bendito, sim, porque tanta doçura me deste, tantos sorrisos e noites a acordar contigo. Amar-te-ei sempre, sei. Amar-te-ei sempre, aparte as insatisfeitas desilusões, aparte os lamentáveis enganos, aparte os mortificados “amo-te” ditos em sussurros de Inverno, até essas me parecem insignificantes nadas comparadas com o amargo aperto que me transporta hoje pelas ruas de cinzento. Não sabes o louco que és. Não sabes. Não sabes o que me chora, o que me suporta, o que me desaba e desabafa, nas minhas horas loucas de mais apertada e ansiosa saudade. Horas, dias, semanas. Chego a não dormir, por vezes, tanta é a falta que a tua mão faz sobre a minha. Vamos casar as nossas mãos, por favor? Ou a minha mão e a sombra da tua? Esqueço-me que não me respondes agora. Sinto tanto este silêncio. São pesadas gotas de metal sobre os meus olhos. Gotejantes pedras arruinadas que esqueceste de levar quando me vens visitar à noite. Lembras a noite em que esperei por ti, à porta de tua casa, para que pudéssemos, tais desafogadas aventuras de adolescente, passar a noite agarrados, sem que ninguém soubesse, como segredos que apenas nós sabemos que guardamos? Recordas esses segredos? Pois eu levo-os comigo para todo o lado, como pedras preciosas que recolhi no nosso caminho, como guardanapos das nossas tardes a comer pizza, ou como bilhetes das noites de cinema em que criticávamos mais do que realmente víamos na tela. E espero deposita-los num altar a ti, com o teu rosto brilhante e sorridente e com o teu cheiro, as tuas pernas brancas e os teus ombros fortes, que nunca me deixavam chegar-te para te beliscar. Sorrio tanto quando penso em nós os dois. Naquele sofá onde ameaçávamos coisas impossíveis, onde criávamos histórias e fantasias tão irreais quanto o nosso espírito se sentia quando flutuávamos juntos. É como se as coisas mágicas e belas nunca deixassem de ser assim: mágicas e belas! E há belezas que se espalham por todo o lado, como o cheiro de belos malmequeres amarelos que desfolhei a perguntar-me por ti. Essa tua voz ecoa no silêncio. Atravessa ruas e ruas, passa toda essa linha de comboio e vem ter a mim, aqui, na minha morada, a 48 minutos de distância da tua. Tão perto. Tão longe. 48 minutos.

18 de abril de 2008

adeus

Saíste. Bateste a porta de mansinho e sinto que não vais entrar outra vez. Junto levaste o meu coração rodeado de juncos melados, e o preto das lágrimas que saltaram quando as palavras do fim apareceram. É assim que sabemos quando acaba: quando queremos que tudo comece de novo.

NEGAÇÃO Não. Não aceito que vás embora. Aquela conversa não fez sentido. Dizes-me que não há mais chama? Como podes dizer isso quando toda eu sou fogo que te quero dar. Não quero que tudo acabe. Podia viver só contigo e sem tudo o resto. Não quero que partas para sempre. Ligo-te, mas não me atendes. Chamo-te, mas não me respondes. Ouço-te em toda a parte. Vejo-te em todo o lado. Todos me perguntam por ti agora que não sei por onde andas. Todos são tu, todos usam o teu perfume, têm o teu casaco castanho, compram as mesmas chicletes de pêssego que tu; todos têm as tuas mãos pálidas e sempre mornas, todos são do Sporting, todos gostam de natas, todos gostam das mesmas marcas que tu conheces e me falavas, todos vêm tomar o seu café comigo e me fazem rir da mesma forma que tu fazias. Todos sabem ouvir e falar da mesma maneira que tu ouves e falas, com esse encantamento que te rodeia. O teu nome espalhou-se pela cidade, e todos trazem consigo um pedaço que me lembra de ti. Sinto a tua falta. Quero-te. Quero-te outra vez. Não aceito que te vás. Tenho tanto no vazio aparente das mãos, e foste embora sem ver o mundo que te queria mostrar.

RAIVA Não me olhas? Não me falas? Não entendo tudo isto. Não me mereces. Ou eu a ti. Quero esquecer-te, e ao mágico que fomos juntos. Quero esquecer as noites na praia, o calor dos teus olhos, os chocolates e as promessas de infinito. Não quero mais isto. É dor a mais para quem prometeu dar-me felicidade eterna.

NEGOCIAÇÃO Volta para mim. Volta e será tudo diferente. Prometo. Vou incendiar o mundo com o que nos une. Não faltarão vidas que nos queiram levar. E não haverá coisa alguma que nos separe.

DEPRESSÃO É agora. Acabou! Quero morrer. Sem ti nada disto faz sentido. Prometeste-me uma vida. Tiraste-me tudo. Assim não quero. Assim não faz sentido. Volta. Volta, por favor. Fala-me! Quero tanto ser tua de novo. Ser um só contigo. Custa-me tanto.

ACEITAÇÃO Assim são os nossos erros: vermelhos e brilhantes. Vivos como andorinhas! Sempre a chilrear, para nos lembrarem que não morreram, mesmo que as saudades do nosso tempo pintem os meus sonhos. Hoje acordei e tinha sonhado contigo de novo. Tem sido assim todos os dias, ultimamente. Quando mais espero ver-me livre das tuas mãos a segurarem a minha cintura, mais depressa me apareces de noite, tal príncipe das trevas, com encantamentos que desconheço, e me assombras e ao meu sono, esperando as moedas do que sobrou dar-te. Espera. Não conto devolver-te o que falta. Quero ter comigo o que não te dei. Segurar-me a isso, e imaginar até à minha demência o que desejei ter sido contigo. Um dia vais voltar, parece que sei. Vais voltar de mãos abertas e com esse sorriso. E essas palavras de quem conhece a alma de uma rapariga. Eu vou olhar para ti com indiferença, pois já não te amarei loucamente nessa altura. Vou segurar-te uma mão, indicar-te o caminho e, quem sabe, voltar-te as costas, pois só aí saberei o que me ensinaste errado sobre o amor.

13 de fevereiro de 2008

20


Hoje.

Hoje faço vinte anos.

Hoje estou feliz.

Há ainda tantas coisas que não fiz. Tantas coisas que não sei.
Tantas coisas que não fui.

Já fui vermelho. Ainda não fui amarelo.
Quero ser amarelo, um dia.

E quero ser grande! Como uma sequóia. Ou como o Universo!

Um dia também quero saber ouvir. Saber falar. Saber dar e receber.
Quero ser madura, porém inocente.
Quero ter a força da minha mãe. Quero ter a beleza de uma criança.

Quero ter o brilho de um pirilampo, ser audaz como uma lebre, nobre como uma flor a sobreviver num mundo de vidro e leve como a verdade.

Quero ser o que tenho, com o que tenho. Quero reconquistar o que já é meu, manter o que amo, lutar pelo que me falta.

Hoje estou feliz.

Hoje sou feliz.

E serei feliz quando o dia de hoje acabar.

1 de dezembro de 2007

infinitos

La grande découpe - Al Magnus

Todas as estrelas são minhas
e guardo-as numa mão de estanho
embrulhadas em farrapos de geleia doce.

De noite liberto as desse mar de cobre
e deito-me no sono verde
(as formigas incomodam-me)
a ver passearem-se pelo infinito
a tocarem o infinito
a serem o infinito por mim.

Em campos ruivos dessa seiva que és
dessa luz que esconde o meu brilho
dessas mãos que desenhas no meu rosto
dessas palavras que me afagam o coração.

És a música que arde aos meus olhos
quando as estrelas me param para pedir corda.

Corres pelas janelas
e saltas como um relógio
ou como um grilo.
Sem fio.

Nesse meu infinito existe.
E existes.

E um infinito
em cada parte tua
em cada parte minha.

Mil infinitos sem nome.

Faz de mim estrelas
que sobem
e sobem
nesse infinito que já não sou.

30 de outubro de 2007

ausência

ausência - helena de sousa

Enquanto morres
deixa que o sonho viva.
Por momentos.
Pois posso sempre
cansar os teus abraços
de mim.

E o mel
que te sobra
e que me entregas
dá-o às andorinhas
para que se espalhe
e se torne abelha
e casulo
e madeira
e cachimbo
e caixão.

E se não voarem os caixões
repete o sonho
adia a morte
e vinga!
Pois se há sonhos
são para que se sangrem
são para que se esmaguem contra o peito.
E para que te recordem
quando te vais.
A tua ausência
em mim.

20 de outubro de 2007

pérolas

A.Hunt

Por ela se escreveram poemas.
Como se ela inventasse os acordes de uma viola que mendiga estrelas, ou poetas que cantam a Cinderelas estragadas.

Por ela se acendiam os lampiões à sua passagem.
Como se a luz parda nascesse dela, ou as fontes, ou as guerras, ou os comboios, ou os cactos.

Por ela se queimavam os plátanos do rosto quando as lágrimas acesas voavam, voavam.
Como se ela valesse lágrimas, ou brisas, ou fotografias, ou células, ou soros.

Por ela as tempestades fundiam-se em osmoses gigantes.
Como se as suas mãos segurassem mais do que guarda-chuvas amarelos e anéis com espirais infinitas.

Por ela se aligeiravam as velhas no mercado.
Como se o mal não viesse difuso no nevoeiro de uns olhos verdes errados.

Por ela se queimavam fitam azuis, enquanto palavras eram expulsas.
Como se os feitiços travassem a fraqueza, ou as heras, ou os espíritos, ou as gotas de água que batem insistentemente no telhado.

Por ela se esvaziam as esteiras, as sementes, as teclas de um piano apagado.
Como se os cinzeiros que alguém enche não fossem já bastantes para ferir os olhos.

Por ela se reinventaram histórias.
Como se as suas palavras valessem mais do que pálidos ruídos de um herói-mocho moribundo.

Nunca lhe faltariam amores. Nunca lhe faltariam mágoas.
Poucos lhe atingiriam as pálpebras.
Muitos menos lhe dariam quente ao coração.

Quero embebedar-me.
E ser outra vez o que queria ser antes de deixar de ser o que era.

13 de setembro de 2007

- I -

Os loucos não pertencem à Terra.


Às vezes tudo parece uma enorme derrota pendurada numa lâmpada, como um espanta-espíritos dançante, atormentado: uma luz pendente, sempre à espreita, como um cão desassossegado, como um bufo de olhos amarelos e intermitentes, um lampião que falha e tine e, à sua volta, uma enorme barreira de nadas, nadas e nadas. Nadas infinitos que, sem serem coisa alguma, como um enorme buraco negro impedem que algo se aproxime da luz. Luz que promete, que aquece, que chama, que brilha, rodeada de melgas e mariposas mansas, tal corpete dourado acentuando a silhueta dos raios quentes. Sugam tudo à sua volta, como vampiros sádicos e sedentos, e ele parece ser atraído para todos os buracos negros que existem na Terra. E não são poucos! Palavras tontas, risos esqueléticos, peles secas, mãos de trombose, piolhos, lêndeas, gestos demasiado pequenos, rostos vazias, olhos vidrados, lábios tortos.


Vivia quase sempre fechado. Tinha mais naquele lugar do que no resto do mundo! No entanto, sabe que as coisas se descobrem a partir de dentro, mesmo o que está lá fora, apesar de idolatrar mais a beleza de um céu pintado de fresco, de uma nuvem a passear ou de um mar raivoso do que qualquer outro sentado nos penedos da praia a abarrotar. No seu pequeno quarto apenas tem uma vela apagada e uma cama com uma eterna colcha suja. Nunca incendiava a vela. Nunca achou que precisasse. Via bem de noite, como um felino vadio que invade a escuridão com dois lumes negros verticais nos olhos. Também nunca destapou a cama. Não se lembrava de alguma vez ter dormido. Era louco. Era o mais são dos loucos.
Rapazola já com barba dura e corpo feito. Barba rasa mas não cortada, sempre com dois dias, como se vivesse sempre e só dois dias. Dois dias infinitos, repetitivos, iguais. Olhos escuros, inquietos, inquiridores, frios e orgulhosos. Tinha olheiras moles de quem dorme acordado. Boca arranhada, sempre, com os dentes ameaçadoramente estendidos, insaciáveis.
Gostava de ser culto, de ter sempre a ultima palavra. Percebia de arte, de música, de história, de física, de biologia, de anatomia, de filosofia. Queria ser sábio, sempre mais sábio, queria ser criativo, queria ser genial, mas queria ser também honesto. Sem saber queria ser criança. Mas ser sempre criança é ser diferente. E ser diferente dói.


foto: Paper - Oleg Dou